Sinônimo de sexo frágil, a mulher desde os primórdios da humanidade foi tratada como um “subproduto” do homem. Uma figura que sempre esteve à margem da própria história, atenta as incumbências que não fugiam a vida privada. Educação dos filhos, cuidado com o lar e “serviços” matrimoniais, esse era o espaço que por séculos foi de direito exclusivo das mulheres. A injustiça histórica também é explicada pela bíblia, por Darwin e, principalmente, pelo ego masculino. Todavia, a afronta a esta cultura patriarcalista pré-história e hegemonia masculina, que culminou com a independência da mulher foi uma luta progressiva, uma verdadeira “guerra dos sexos” que perdura até hoje e escancara o machismo existente nas sociedades. 

No Brasil houve nomes importantes que marcaram nossa sociedade por suas lutas contra esses parâmetros como Mietta Santiago, uma escritora, advogada e uma das vozes feministas de maior repercussão no Brasil na década de 1920. A advogada foi responsável por perceber que o veto ao voto feminino era uma lei que contrariava a própria constituição de 1821. Mietta esclareceu a má interpretação do termo “cidadão”, visto na época como se referindo apenas aos homens. O resultado foi que o “Partido Republicano do Rio Grande do Norte”, aproveitando-se desta brecha, elegeu, em 1929, Luiza Alzira Soriano Teixeira, uma ação ousada para época que a tornou a primeira mulher na história do Brasil a ocupar um cargo político no país. Mas as conquistas não pararam por aí. Embora Mietta Santiago tenha ganhado judicialmente o direito de votar, somente no novo código eleitora de 1933 é que se foi estendido o direito ao voto e a representação política a todas as mulheres. Tamanha estranheza causou a conquista da advoga que até motivou o poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade, “Mierra Santiago”, no qual ele deixa evidente o machismo arraigado naquela sociedade, onde os únicos direitos reservados as mulheres limitavam-se ao conforto de seu lar.

O combate a essa repressão ganhou evidencia e redesenhou o papel da mulher na humanidade a partir da década de 1960, quando os movimentos feministas se intensificaram pelo ocidente. Hoje uma das lutas que os movimentos feministas vêm travando incansavelmente contra a sociedade é o combate a violência domestica e familiar às mulheres. De suas inúmeras conquistas, a Lei de nº 11.340, promulgada em sete de agosto de 2006, é a mais emblemática de todas, porque com o vigor desta mesma lei, as brasileiras tiveram direitos mais delineados de proteção contra a violência e penas mais duras para quem ainda insiste em tais atos.

Considerada uma das três melhores legislações contra a impunidade no mundo, a “Lei Maria da Penha” é fruto da luta de Maria da Penha Maia Fernandes para condenar seu agressor, o professor colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, com quem a biofarmacêutica foi casada. Em 1983, Marco Viveros tentou matá-la duas vezes, a primeira simulando um assalto, que a deixou paraplégica, e a segunda vez eletrocutada. Até a sanção da lei, o Estado brasileiro não punia adequadamente os casos de violência domestica, tanto que até 1997 ainda não havia sido tomado uma decisão sobre o caso de Maria da Penha e Viveros havia pego apenas dois anos de prisão em regime fechado desde o ocorrido.

A realidade da sociedade brasileira só passou a mudar devido a pressões de órgãos internacionais de combate a violência. O pontapé inicial deu-se quando, em 1998, Penha decidiu denunciar o seu caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em conjunto com o Centro pelo Direito e a Justiça Internacional (CEJIL) e o Comitê da América Latina e o Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM). Após analises e a falta de resposta do Governo brasileiro, a Comissão Interamericana condenou o Brasil por negligenciar o caso e, a partir desta condenação, houve mudanças no código Penal, de Processo Penal e Execução Penal para punir e erradicar a violência contra a mulher além de uma participação mais efetiva do Estado para reeducar a sociedade e colocar definitivamente um ponto final nesta violência exacerbada.

Apesar dos avanços e progressos no que se diz respeito ao combate a violência doméstica e familiar à mulher, o número de casos ainda é expressivo no país, e quando se trata desses atos, não ha distinção entre classe social, nível de escolaridade ou mesmo região. Um “mapa da violência contra a mulher”, divulgado pelo Instituto Sangari, aponta que mesmo com o advento da Lei Maria da Penha o número de casos de violência contra a mulher cresceu consideravelmente entre os anos de 1980 e 2010. Segundo dados, o número de mulheres assassinadas no Brasil cresceu cerca 217,6%, fazendo com que o país ocupe o 7º lugar no ranking mundial dos países com mais crimes praticados contra as mulheres.

Esses atos de violência doméstica e familiar não são um mal alheio e também repercute em nosso município. Segundo Rosaíne Lunardelo, à frente da Delegacia da Mulher desde março de 2008, o número de inquéritos instaurados chegam a ultrapassar 30 casos de agressões que geram lesões por mês, o que é um número bastante significativo em uma cidade de interior, mas esses são apenas os casos oficializados. “No meu primeiro ano cheguei a instaurar 100 inquéritos. Este ano, até agora, já estamos com cerca de 170 inquéritos instaurados”, comenta a Delegada. Apesar dos números preocupantes, Rosaíne destaca que isto é bom porque aponta que a mulher está mais confiante nas ações investigativas da polícia. “Esses números não significam que os casos de violência doméstica contra a mulher cresceram, significam que as mulheres estão tendo mais coragem de falar”, enfatiza.

Sobre seu papel, Rosaíne esclarece que a principal função do delegado de polícia é mediar os conflitos que repercute na sociedade e que essa “mediação de conflitos” é uma realidade das capitais que começou em Brasília e que está sendo trazida para o interior. Segundo conta, a maioria das mulheres que a procuram estão apenas buscando solucionar um problema familiar, e que existe uma preocupação latente com o bem estar do parceiro. Não raro, muitas mulheres acabam desistindo das denuncias, mas, segunda conta Rosaíne, a partir do momento que a agressão é formalizada, a denuncia contra o parceiro foge ao controle da vitima, passando o Poder Público a intervir por ela. “Ela só pode desistir da denúncia perante o juiz” ressalta a Delegada.

Rosaíne ainda comenta que a violência doméstica é sazonal, sendo no verão os seus índices mais altos; além disto, fatores agravantes como econômicos, desequilíbrio emocional e até mesmo períodos muitos longos de convivência entre o casal, como férias, podem geram um maior índice de violência. No entanto, essas agressões desmedidas, na maioria das vezes, são abafadas pela mulher, que “encoberta” seu agressor. “Não é possível entrar na mente de uma pessoa para saber o que se passa, mas os motivos para isso são inúmeros: medo, filhos, dinheiro...” esclarece. A Delegada ainda conta que há casos em que a vítima entre em desespero por medo de seu parceiro ser detido e dizem ter batido a cara no obro, no braço, enfim, qualquer desculpa que possa livrá-lo de uma condenação.

Indubitavelmente o advento da Lei Maria da Penha veio para reeducar a sociedade brasileira e Rosaíne ainda destaca a importância de Penha na luta contra a violência a mulher. Todavia, a cultura machista que tanto motivou os parâmetros da violência, tal como está hoje, foi um dos principais fatores que contribuiu para que crescêssemos em uma sociedade onde o homem ter vários relacionamentos é motivo de orgulho, e a mulher, de desonra. Hoje, ditados populares como “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, já não são mais aceito pela ampla maioria, e muito menos pela Justiça Pública. “Isso são clichês sociais que precisam ser desmistificados”, realça Rosaíne Lunardelo. “Historicamente somos uma sociedade fundamentada no patriarcalismo e no machismo. Para a mulher era crime o adultério, a sedução, e crimes cometidos por decorrência de uma falha da mulher era justificável. Na esfera penal, crime à mulher motivado por adultério era tido como defesa da legítima honra e vigorou muito no Brasil na década de 1970 e 1980, mas hoje, claro, isso é insustentável”.

Fatores culturais não são fáceis de serem mudados, mas hoje há uma preocupação maior do Estado com relação à violência doméstica e as leis, mais severas, também contribuem para que essa realidade se transforme aos poucos. Em Paraíso será criado o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, uma criação que há bastante tempo a delegada Rosaine Lunardelo vem lutando para conseguir. Sem dúvida é uma ferramenta a mais no combate da violência doméstica e familiar à mulher e um ambiente onde as mulheres terão mais segurança para falarem de seus problemas. Rosaine assinala que o ideal, inclusive, seria que a próprias denuncias não se iniciassem diretamente com um policial, de ambos os sexos, mas sim com um psicólogo ou uma assistente social, a fim de averiguar se o caso da mulher em questão seja mesmo de cunho policial. Neste aspecto, o Conselho da Mulher traria grandes avanços nas ações da polícia, e uma equipe feminina, como conta a Delegada, seria mais indicado para tratar desses assuntos; ao estar tratando de algo tão delicado como agressões do parceiro, uma equipe composta apenas por mulheres, incluindo uma médica legista, e não um médico, contribuiria para intimidar menos a vítima e facilitar o trabalho da polícia. Para denuncias em nosso município a mulher pode tanto procurar a Delegacia da Mulher, na Avenida Dárcio Cantieri, nº 1879, como entrar em contato através do disque denuncia, o número 181, ou contatando diretamente a Delegacia da Mulher através do fone 03535311138. Essa violência afeta, não somente a própria mulher, mas a todos os seus vínculos sociais. A única forma de dar um basta e evitar que mais vidas se percam é não ficar calado!

Por João Gustavo

Matéria na integra produzida originalmente para a "Revistas Expressão Livre"
- Ano 3, Edição 39, Agosto de 2013